segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Campbell's


domingo, 28 de novembro de 2010

Do armário ou Nárnia é logo ali


"Deve ser um guarda-roupa colossal!", pensou Lucy, avançando ainda mais.


Eu sempre achei que a noção de armário construída pela cultura gay fosse uma espécie de mimesis do Mito da Caverna de Platão. Nós, até certa idade, ou durante a vida toda, ficamos acorrentados na escuridão do mundo heteronormativo a olhar as sombras projetadas pelas frestas das portas do armário. As sombras são todos os estereótipos do que a cultura dominante nos diz ser o que é gay: aquele que adota uma postura antinatural, já que não podemos nos reproduzir e é a reprodução fim último do homem (o Gênesis deixa isso bem claro, quando deus diz a Adão e Eva frutificai-vos, e muitiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a); aquele pecado mortal que fez com o deus do Velho Testamento arrasasse Sodoma e Gomorra (Dante Alighieri nos dá até um lugar no Purgatório e no Inferno em sua Divina Commedia); um cidadão de segunda classe que não deve ter direitos; a escória, o errado, o torto; o menino criado com a avó ou o que veste os sapatos de salto alto da mãe (poderia passar horas enumerando os estereótipos, mas com que finalidade?).
Aos poucos, nos libertamos, saímos em debandada daquele lugar apertado, descobrimos ABBA, Cher, Kylie Minogue, Madonna e acabamos por concluir que aquelas sombras não são nada mais do que uma imagem deveras imprecisa da nossa realidade.
É óbvio que estou exagerando. E essa hipérbole tem por único fim deixar cômico o ato de sair do armário.
Sabemos que ser gay no mundo pós-contemporâneo é mais fácil (talvez não mais do que na Grécia antiga) do que era há alguns anos, mas não deixa de ter seus percalços. Em países como o Brasil, praticamente não temos direitos civis, à exceção das frágeis conquistas jurisprudenciais.
É inegável, no entanto, que estamos aos poucos saindo do gueto e conquistando nosso espaço enquanto gays.
Depois que saí do armário, ao menos para mim mesmo, e interrompi aquela auto-negação danosa que me consumia, acabei por entender o quanto essa entidade, o armário, é perigosa: ela conduz seus habitantes a viver à margem, reduzindo sua identidade gay a perspectiva puramente sexual, priva-os de se realizarem enquanto humanos, enche-os de complexos com o modo como agem, falam, pensam, desejam.
A província é mais propícia ao armário. Estão todos imiscuídos de uma profunda mentalidade cosmogônica judaico-cristã, semita. Cuidam uns da vida dos outros. Segregam-se uns aos outros por motivos diversos: suas árvores genealógicas, saldos bancários, roupas, casas, bairros, sexualidade.
Nascer gay na província (e estou partindo do pressuposto de que a sexualidade é irresistivelmente inerente à natureza do indivíduo) é mais tortuoso do que na metrópole. Demoramos a cogitar que aquela impossibilidade absoluta que é ser homossexual é possível; tardamos a encontrar nossos iguais e a sentir algum tipo de senso de pertencimento. Somos completas aberrações (a si mesmos por um tempo, afinal continuamos a ser para o resto da sociedade provinciana).
Os gays de minha família, antes de mim ( e sinto ser o único dessa geração), acabavam por irem habitar terras exóticas além do Atlântico, onde poderiam viver suas vidas sem o peso da tradição e que sua gens trariam.
Com a era da internet há mudanças: nossos irmãos encontram-se uns aos outros sem a necessidade de sair de casa. Discutem suas dúvidas, descobrem que não são seres únicos. Seria o prelúdio do fim do armário?
Para aqueles que habitam as profundezas do armário, certa feita cunhei um termo: estão em Nárnia, aquele país fantástico recoberto de gelo, governado por uma feiticeira branca que os irmãos Pevensie descobrem ao atravessar um velho guarda-roupa em O leão, a feiticeira e o guarda-roupa, de C.S. Lewis.
Lewis provavelmente me mataria se pudesse, já que suas Crônicas de Nárnia são uma tentativa desesperada de reconstruir um certo cristianismo na narrativa.
Paciência. É culpa da globalização.

sábado, 27 de novembro de 2010

Mandamentos



Nunca trague um charuto.

Gens



Eu realmente gostaria de ter nascido grego. Infelizmente a única coisa grega que eu tenho (além de uma Ilíada e uma Odisseia, um Aristóteles e um Platão) é uma trisavó nem um pouco atraente, com um daqueles narizes aquilinos.
Sua expressão melancólica e o luto com que se veste na única foto que eu tenho dela não inspiram nada além de pena.
Meu bisavô tem cara de mafioso. O sangue da Calábria é genótipo (ou fenótipo?) dominante.
A areté, esvaiu-se.

Um óbolo na boca






Recentemente visitei o Orco. Plutão olhou para mim  e mandou Caronte me despachar de volta em sua lancha pelo Estige.
Vá pecar, menino - disse.




*Nota do autor:
O Orco é o inferno, governado por Plutão (Hades, na mitologia grega). Caronte é o barqueiro do inferno, que conduz os mortos mediante o pagamento de um óbolo (pequena moeda de cobre, colocada na boca do morto) pelos rios Aqueronte e Estige rumo aos domínios de Plutão.

De vita Caesarum




Resolvi voltar a escrever.
Já se passaram dez minutos e a única frase que escrevi é Resolvi voltar a escrever. 
A idéia é começar despretensiosamente e deixar com que as Musas guiem minhas mãos.
Calíope, eloquência.
Clio, criatividade.
Erato, poesia.
Melpômene, tragédia.
Tália, comédia.
As demais não me servem. Não sou músico. Não sou astrônomo (eu prefiro astrónomo). Não sei dançar, embora saiba rebolar. Não gosto de música sacra.
É hora de deixar para lá essa invocação e começar a de fato escrever.
Esse talvez tenha sido o ano mais movimentado da minha vida. Não estou exagerando. Quando se vive a maior parte da existência na província não se pode contar com grandes reviravoltas e lances de aventura. Ainda há charretes andando nas ruas.
A universidade me mudou. Estou sendo provavelmente um tanto exagerado, afinal ela é também na província. Devo salientar que para quem nasceu abaixo do trópico de capricórnio, o calor excessivo não é nada agradável. Chego a acreditar naquelas teorias ultrapassadas a respeito da relação entre indolência e altas temperaturas.
A questão fundamental é que a despeito do calor e de todas as vicissitudes inerentes a fixar residência em terras tão selvagens, eu acabei por mudar.
Não me livrei do ranço familiar que está impregnado na minha essência. Ainda não lido com falta de pontualidade. Não misturo doce com salgado. Não como chuchu. Não transo no primeiro encontro. Não lido bem com não ter o controle da situação. Não vou a um lugar sem ser convidado. Não combino cores. Não uso cinto preto com sapato preto. Não uso tecidos sintéticos. Não vou desarrumado a eventos sociais. Não deixo de tomar banho iracemicamente e religiosamente três vezes ao dia.
Como você pode perceber, caro leitor, eu tenho uma série de mandamentos incoerentes gravados em pedra afixados no equivalente ao foro romano da minha alma. Eu diria que Deus os  gravou em pedra no meu Monte Sinai, mas é uma metáfora por demais bíblica.
Meus amigos me ajudaram com isso. Hoje sou mais flexível do que era. Tenho ido de chinelos mais de uma vez à universidade. Filho de quem sou, neto de quem sou, sangue do sangue que sou, isso é praticamente uma heresia.
Alguma coisa me angustia enquanto escrevo. Será fome?
Se você não sabe, embora eu tenha certeza que saiba afinal só há uma leitora assídua desse blog.
Um interfone tocou alto. Perdi completamente a concentração.
Se você não sabe, e eu o consideraria extremamente obtuso em não saber afinal o conjunto da obra já parece dizer isso, eu sou gay. Guei. Prefiro viado, com "i" ao invés de "e". Não sou o animal, sou homossexual. É estranhíssimo escrever homossexual, eu me sinto numa daquelas aulas de taxonomia.
A minha sexualidade é praticamente o centro fundador da minha personalidade. Eu provavelmente não seria a mesma pessoa se não fosse gay. Eu seria menos desconfiado, menos rude, menos inseguro, menos engraçado, menos bem-vestido, menos inteligente (depois de uma análise criteriosa da minha árvore genealógica, acabei por concluir que todos os homens heterossexuais da minha família são completamente obtusos).
Embora as pessoas achem o contrário, eu me apaixono freqüentemente pelo vulgar. A vulgaridade exerce sobre mim um fascínio que faz com que eu me pergunte às vezes se não se trata de um desejo oculto por se tornar vulgar. A verdade é que eu não me arrisco pelos tortuosos caminhos do comum, tenho medo, ou uma pequena parcela de culpa católica. O fato é que toda vez que sou vulgar, algo de ruim acontece. São as Parcas vibrando o meu fio, dizendo volte para onde estava, meu filho!
Tem sido dito que eu sou um gay que não gosta de homens. Eu prefiro acreditar que eu sou um gay sem muitas perspectivas.
Por favor não me encare como uma mulher solteira de 50 anos, impregnada de melancolia. Eu estou em um daqueles interregnos... É uma pax romana íntima.
Eu quis até agora o silêncio. Ser gay para mim é em certas horas estar completamente sozinho. Vazio.
Mas algo, desde anteontem, me mudou. De novo.
São as invasões bárbaras. Adeus, Romulus Augustulus. Eu quero é ser Átila, o Huno.
Decidi parar com o canto gregoriano dentro de mim. Expulsei das minhas entranhas todos aqueles monges vestidos de negro a repetir sicut erat in principio et nunc et semper et in saecula saeculorum.
Pense nisso como um germe de novas perspectivas. A refundação.
Preciso estudar. Preciso fumar.
Estou com vontade de comer ora-pro-nobis.
Estou com vontade de viver.  
Escrever...É o primeiro passo.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010