domingo, 28 de novembro de 2010

Do armário ou Nárnia é logo ali


"Deve ser um guarda-roupa colossal!", pensou Lucy, avançando ainda mais.


Eu sempre achei que a noção de armário construída pela cultura gay fosse uma espécie de mimesis do Mito da Caverna de Platão. Nós, até certa idade, ou durante a vida toda, ficamos acorrentados na escuridão do mundo heteronormativo a olhar as sombras projetadas pelas frestas das portas do armário. As sombras são todos os estereótipos do que a cultura dominante nos diz ser o que é gay: aquele que adota uma postura antinatural, já que não podemos nos reproduzir e é a reprodução fim último do homem (o Gênesis deixa isso bem claro, quando deus diz a Adão e Eva frutificai-vos, e muitiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a); aquele pecado mortal que fez com o deus do Velho Testamento arrasasse Sodoma e Gomorra (Dante Alighieri nos dá até um lugar no Purgatório e no Inferno em sua Divina Commedia); um cidadão de segunda classe que não deve ter direitos; a escória, o errado, o torto; o menino criado com a avó ou o que veste os sapatos de salto alto da mãe (poderia passar horas enumerando os estereótipos, mas com que finalidade?).
Aos poucos, nos libertamos, saímos em debandada daquele lugar apertado, descobrimos ABBA, Cher, Kylie Minogue, Madonna e acabamos por concluir que aquelas sombras não são nada mais do que uma imagem deveras imprecisa da nossa realidade.
É óbvio que estou exagerando. E essa hipérbole tem por único fim deixar cômico o ato de sair do armário.
Sabemos que ser gay no mundo pós-contemporâneo é mais fácil (talvez não mais do que na Grécia antiga) do que era há alguns anos, mas não deixa de ter seus percalços. Em países como o Brasil, praticamente não temos direitos civis, à exceção das frágeis conquistas jurisprudenciais.
É inegável, no entanto, que estamos aos poucos saindo do gueto e conquistando nosso espaço enquanto gays.
Depois que saí do armário, ao menos para mim mesmo, e interrompi aquela auto-negação danosa que me consumia, acabei por entender o quanto essa entidade, o armário, é perigosa: ela conduz seus habitantes a viver à margem, reduzindo sua identidade gay a perspectiva puramente sexual, priva-os de se realizarem enquanto humanos, enche-os de complexos com o modo como agem, falam, pensam, desejam.
A província é mais propícia ao armário. Estão todos imiscuídos de uma profunda mentalidade cosmogônica judaico-cristã, semita. Cuidam uns da vida dos outros. Segregam-se uns aos outros por motivos diversos: suas árvores genealógicas, saldos bancários, roupas, casas, bairros, sexualidade.
Nascer gay na província (e estou partindo do pressuposto de que a sexualidade é irresistivelmente inerente à natureza do indivíduo) é mais tortuoso do que na metrópole. Demoramos a cogitar que aquela impossibilidade absoluta que é ser homossexual é possível; tardamos a encontrar nossos iguais e a sentir algum tipo de senso de pertencimento. Somos completas aberrações (a si mesmos por um tempo, afinal continuamos a ser para o resto da sociedade provinciana).
Os gays de minha família, antes de mim ( e sinto ser o único dessa geração), acabavam por irem habitar terras exóticas além do Atlântico, onde poderiam viver suas vidas sem o peso da tradição e que sua gens trariam.
Com a era da internet há mudanças: nossos irmãos encontram-se uns aos outros sem a necessidade de sair de casa. Discutem suas dúvidas, descobrem que não são seres únicos. Seria o prelúdio do fim do armário?
Para aqueles que habitam as profundezas do armário, certa feita cunhei um termo: estão em Nárnia, aquele país fantástico recoberto de gelo, governado por uma feiticeira branca que os irmãos Pevensie descobrem ao atravessar um velho guarda-roupa em O leão, a feiticeira e o guarda-roupa, de C.S. Lewis.
Lewis provavelmente me mataria se pudesse, já que suas Crônicas de Nárnia são uma tentativa desesperada de reconstruir um certo cristianismo na narrativa.
Paciência. É culpa da globalização.

Nenhum comentário: