terça-feira, 5 de abril de 2011

Historiae Homosexualium


Não te deitarás com um homem como se fosse mulher: isso é uma abominação.  (Levítico 18:22)

Se um homem dormir com outro homem, como se fosse mulher, ambos cometerão uma coisa abominável. Serão punidos de morte e levarão sua culpa. (Levítico 20:13)

O Levítico, um dos cinco livros do denominado Pentateuco, os primeiros do Velho Testamento da Bíblia, pode ser considerado como o pai da homofobia em termos de Civilização Ocidental. Suas avós são as Leis Médio-Assírias§ 18 e 20) e as Leis Hititas (§ 189), textos legais que claramente inspiraram sua composição, já que ele tem um caráter eminentemente normativo: regras de conduta que os hebreus deveriam observar no trato social.
A interpretação da Bíblia sempre foi objeto de controvérsia. A Igreja Católica, bastião único da cristandade ocidental por séculos adotou uma interpretação única, produto dos estudos promovidos pelos doutores da Igreja.
Na Idade Moderna, com a Reforma Protestante e o advento de traduções dos textos bíblicos para os idiomas nacionais, tal como formação de uma Bíblia Protestante, que promoveu uma nova seleção dos livros, prega-se a interpretação livre dos textos sagrados.
Anote-se que a Bíblia ainda é entendida, para as religiões judaico-cristãs, como pura expressão do verbo divino. Tal percepção tem como consequência a ideia de que o texto bíblico é isento de falhas e contradições. 
Seria incoerente exigir que a interpretação religiosa de um texto sagrado levasse em consideração os aspectos históricos e culturais que influíram em sua composição. Isso é papel da ciência histórica.
A leitura do Pentateuco permite uma clara percepção de que a manutenção do potencial reprodutivo do povo hebreu é uma das principais preocupações de seus escritores. Quando deus diz a Adão e Eva, no Gênesis, frutificai, e multiplicai-vos, enchei a Terra e submetei-a (1:28) ele indiscutivelmente determina que é o povoamento da Terra e seu domínio o objetivo a ser perseguido pela sua criação.
Suscita-se então a dúvida de por que Moisés, a quem é atribuída a composição dos cinco livros primos, insistiu tanto em manter o potencial reprodutivo de seu povo.
A Crescente Fértil, região histórico-geográfica habitada pelos semitas, dentre eles os hebreus, é marcada pela fragilidade territorial que possibilitou ondas de invasão de povos vindos do Oriente. Não há, como na Europa Continental, obstáculos geográficos que inviabilizaram invasões recorrentes.
Os hebreus, em especial, foram vítimas dessa fragilidade. Moisés foi o libertador do Cativeiro do Egito, anos mais tarde, o povo hebreu ficará cativo na Babilônia.
A única solução vista pelos patriarcas como um modo de diminuir os riscos de invasões, e cativeiros em outros reinos, é o aumento populacional.
Qualquer obstáculo à reprodução dos hebreus é então condenado. Nisso se insere às condenações à homossexualidade presentes em Levítico, Reis e Deuteronômio.
O Código de Hammurabi, as Leis de Urukagina de Lagash e as Leis de Eshnunna, textos legais precedentes às Leis Médio-Assírias, Hititas e ao Levítico não apresentam dispositivos condenatórios substanciais à homossexualidade. Percebe-se um recrudescimento dos costumes com a ascensão das duas civilizações guerreiras que posteriormente irão influenciar o conjunto normativo da Bíblia Hebraica.
O judaísmo estava adstrito a um determinado grupo étnico. O desenvolvimento do cristianismo, notadamente do catolicismo, e sua ambição de universalidade concretizada na popularização do monoteísmo cristão na Civilização Ocidental mundializam a série de condenações bíblicas à homossexualidade.
As práticas, antes toleradas pela cultura greco-romana, vão aos poucos sendo alvo de proibições legais. Na Idade Média, com o domínio quase absoluto da Igreja sobre a política europeia, observamos notícias de perseguições à homossexuais.
Há um arrefecimento dessas regras costumeiras na Idade Moderna, graças à perda de prestígio da Igreja e da religião de modo geral, que é revertido com o alvorecer da Idade Contemporânea e da cultura burguesa.
A era vitoriana inaugura um puritanismo rígido nos costumes, com o deslocamento do sexo para uma esfera privada por excelência.
As teorias cientificistas do século XIX passam a investigar as origens biológicas da homossexualidade, conceituando-a como uma patologia.
Vários países editam normas discriminatórias e proibitivas.
Em 1865, no Reino Unido, um dos expoentes da literatura gay, Oscar Wilde é condenado a pena de trabalhos forçados por uma série de atos imorais com rapazes.
É também no século XIX que observamos o início do movimento gay. Na Alemanha, em 1867 é fundado o Comitê Científico-humanitário (Wissenschaftlich-humanitäres Komitee, WhK), com fins de lutar contra uma prescrição do Código Penal Alemão. É considerado o primeiro movimento gay da história.
O WhK estava intimamente ligado ao Institut für Sexualwissenschaft (Instituto para a Ciência Sexual), criado para o estudo e investigação da sexualidade humana.
Em 1903 é fundada a Gemeinschaft der Eigenen (GdE, comunidade dos próprios, dos especiais), que publica a primeira revista gay em circulação da história, a Der Eigene.
Com o avanço do nazismo e o início às perseguições aos homossexuais na Alemanha, tais instituições desaparecem.
Gays passam a ser recolhidos em campos de concentração e marcados com um triângulo rosa invertido. Mais tarde, será um de nossos símbolos.
No Reino Unido, em 1897 é fundada a Ordem de Queronéia, que pode ser considerada a primeira organização LGBT do país.
É, no entanto, nos Estados Unidos que vai se desenvolver um Movimento Gay mais substancial. A revolução sexual dos anos 1960 cria a possibilidade de expressão dos LGBT's. O sexo não está mais escondido na esfera privada.
Os Distúrbios de Stonewall, em 28 de junho de 1969, em que LGBT's entraram em confronto com a polícia após se cansarem das perseguições inauguram uma nova organização política. É o estopim do movimento de liberalização dos gays que irá culminar logo em seguida, na Califórnia, com a ascensão de Harvey Milk.
Os gays passam a se organizar politicamente e pleitear pela edição de normas antidiscriminatórias e por seus direitos civis.
Quanto à homofobia, trata-se de um problema civilizacional, imiscuído na consciência religiosa das populações tributárias dos semitas.
Moisés, ao garantir a sobrevivência de seu povo, condenou séculos depois uma população à exclusão social e às perseguições. 
É a laicidade plena, a total separação entre Estado e religião, que garante a concretização dos direitos civis gays. Um estado só é laico quando consegue se desvincular de uma perspectiva religiosa de casamento, e de família.
Próximos capítulos: Brasil.

2 comentários:

Alan disse...

Conteúdo fundamental para qualquer homo/ simpatizante. Sorte de quem se descobre nos tempos de hoje e pode ler isso, muita sorte.

Parabéns, Rico! Orgulho de tii!!! ;)

Kaká Bullon disse...

Texto muito bem arquitetado. Colocou o dedo na ferida.

E pensar que podemos abranger mais o assunto e veremos que não só a homofobia, mas muitas outras ações foram e ainda são baseadas no momento histórico pelo qual uma civilização está passando. Se a ordem é se reproduzir, proíbe-se o aborto. Se a ordem é diminuir a reprodução considerando-se espaço físico e condições de uma civilização, permite-se o aborto. Oferece-se condiçõs e apoio a isso.
Se a ordem é submissão à instituição, 'reforma' na civilização, passa-se por cima de quem vai contra. Cria-se bruxas pra serem queimadas em fogueiras.

A 'religião' está cheia de marcas de suas tentativas de justificar atos podres usando o nome de Deus.

Infelizmente a luta de todos os apontados pelo Estado/Igreja como pedras no caminho ainda será muito longa. Que bom que temos pessoas como você pra enxergar pelo ângulo e compartilhar com aqueles que nem imaginam pelo que de fato estão lutando.

adorei!