quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Ensaio sobre o radar ou Boi preto conhece boi preto



Frequentemente nos deparamos com a habilidade instintiva de identificar diante de um conjunto a priori desordenado de características nossos iguais. Desde a época em que éramos retratados nas ânforas gregas em posições que deixariam qualquer assíduo frequentador de dark rooms envergonhado, chamamos isso de radar (gaydar para os adeptos da aglutinação).
Gays na maioria das vezes são capazes de encontrar outros gays mesmo em ambientes eminentemente heteronormativos. É claro que heterossexuais, em certos casos, também são capazes de perceber se alguém é gay: isso acontece, na maioria das vezes, porque o gay em questão possivelmente tem as características que a cultura dominante atribui a um homossexual. Trocando em miúdos, modos ou características físicas femininas (a famosa cara de gay): é o gay que já nasceu fora do armário porque a sociedade automaticamente já lhe atribuiu esse significado. É o que eu chamo de ser assumido à força. São esses os gays que mais sofrem com a exclusão social decorrente da mentalidade consevadora, religiosa e heteronormatizante de alguns setores da população.
O movimento heteronormatizante da comunidade gay atual também me intriga, mas isso é assunto para outro post.
Também não irei discutir aqui a estranha habilidade manifestada por algumas mulheres heterossexuais em identificar gays, ou ao menos atraí-los. São para mim um mistério. Provavelmente fruto de alguma brincadeira de Afrodite nos primórdios da criação.
Na pós-contemporaneidade, com a demolição parcial do armário, a ideia do que é ser gay tende a se tornar mais tênue, já que além dos assumidos à força, juntam-se às nossas fileiras aqueles que não são a reprodução do estereótipo construído pela civilização, os que a são de maneira parcial ou que ao menos têm uma certa habilidade em dissimular suas características mais femininas.
A tendência à androginia que se propagou na última década também contribuiu para que a identificação de um gay se tornasse ainda mais confusa. É perfeitamente possível que um homem andrógino seja heterossexual, ou bissexual, embora  gays um tanto conservadores como eu (se é que isso é possível), ainda relutem em acreditar.
Diante desse caos, o radar subsiste. Eu mesmo costumo me gabar para os meus amigos a precisão com que consigo identificar nossos irmãos. Em certos casos, um mero movimento da boca ao falar ou o modo como a pessoa mexe nos cabelos faz brotar em mim a certeza de que se trata de outro gay. 
O caráter quase que místico do radar me fez crer na possibilidade da existência de um bloco de modos de agir atrelados à sexualidade e à natureza do indivíduo gay. Minúcias, imperceptíveis aos olhos dos outros, mas que nos dão condições de perceber com um certo grau de exatidão nossos irmãos em ambientes hostis.
O processo de identificação provavelmente também passa pelas formas que nós dissimulamos nossas características femininas (eu acredito que a femilinidade, mesmo que em menores concentrações, é inerente à natureza de um gay). Todos nós, quando habitantes das terras geladas de Nárnia, provavelmente recorremos às mesmas formas de dissimulação, passamos pelos mesmos processos, e acabamos por identificá-los em nossos iguais.
Se você é gay e sofre com a terrível dificuldade de não conseguir nos perceber à sua volta, ou a margem de erro é enorme, sinto lhe avisar, mas provavelmente isso é resultado de longas temporadas nos domínios da feiticeira branca. O armário nos deixa irrascíveis. Empregamos tanto esforço em anular nossa sexualidade, e impor outra, que acabamos por enfraquecer nossa percepção. Aconselho uma mudança de postura e uma atitude mais observadora. Aos poucos, seus dons irão se manifestar.
Aos desesperados, e às leitoras heterossexuais assíduas desse blog, aproveito para transmitir um diploma normativo milenar: a lei do pescoço.
Ela enuncia que em situações de despreocupação o instinto nos faz virar o pescoço para olhar o que nos agrada. No meu caso, ao ver passar por mim um homem de incomparável beleza, automaticamente irei olhá-lo, mesmo que na direção oposta esteja vindo a reencarnação de Perséfone. Isso porque a despeito da reencarnação de Perséfone ser realmente algo notável, ela em princípio não me agrada. Notícias históricas nos dizem que essa lei se aplica inclusive a habitantes de Nárnia.
Boi preto conhece boi preto, já dizia um sábio baiano.

Um comentário:

Luiz, o baiano disse...

Hahahaha. Muito bom o post (o blog em si é muito bom). Parabéns!